Em nome de Deus – David Yallop

Uma investigação em torno do assassinato do papa João Paulo I

O jornalista britânico David Yallop publicou em 1984, após longa pesquisa, a obra Em nome de Deus (In God’s Name), na qual oferece pistas sobre uma possível conspiração para matar João Paulo I. A dar-se crédito às fontes de Yallop (que incluem inúmeros clérigos e habitantes da cidade do Vaticano), João Paulo I esboçara, no início de seu breve pontificado, uma investigação sobre supostos esquemas de corrupção no IOR (Istituto di Opere Religiose, vulgo Banco do Vaticano). Logo após eleger-se papa, ele ficara a par de inúmeras irregularidades no Banco Ambrosiano, então comandado por Roberto Calvi, conhecido pela alcunha de “Banqueiro de Deus” por suas íntimas relações com o IOR (o corpo de Calvi apareceu enforcado numa ponte em Londres, quatro anos depois, por envolvimento com a Máfia).

João Paulo I, o “papa sorriso”.

Por saber que nem todos terão acesso a tão profundo e minucioso trabalho que expõe a verdadeira face do Vaticano e dos que se dizem servos de Cristo, transcrevemos, a seguir, alguns dos principais trechos deste livro revelador:

(…) Sempre que alguém resolveu opor-se ao caminho do Vaticano, simplesmente arranjava-se uma forma de remover do jogo a peça inconveniente e inescrupulosamente continuar o roubo, a trajetória fraudulenta. Galileu Galilei, Giordano Bruno, Albino Luciani (o papa João Paulo I) são exemplos notáveis. Luciani descobriu-se obrigado a se confrontar com a grandeza do Vaticano e as intrigas da Cúria. Suas aspirações logo após a eleição se tornaram bastante claras: uma revolução total. Estava determinado a levar a igreja de volta a suas origens, de volta à simplicidade, honestidade, ideais e aspirações de Cristo. As investigações de Albino Luciani sobre atividades corruptas e desonestas lançaram os responsáveis no medo mais profundo. Sua impaciência com a pomposidade da Cúria causou indignação. Por haver almejado iniciar uma radical e revolucionária mudança de postos no staff do Vaticano (o que culminaria com uma revisão de todas as suas operações financeiras), Albino Luciani, ou João Paulo I, foi assassinado 33 dias após sua eleição. Ele era, ao contrário de seus contemporâneos, totalmente empenhado na convicção de que a igreja católica devia ser a igreja dos pobres. Acreditava firmemente em praticar o que se pregava. Segundo ele, os pobres “não devem ser ajudados com a caridade ocasional e ‘superficial’, mas sim de uma maneira que possa realmente beneficiá-los”, o que contrariava (e muito) os interesses da hierarquia dominante. Albino dizia que tencionava levar a igreja de volta ao mundo e às palavras de Cristo; de volta à simplicidade e honestidade de suas origens. Para ele, se Cristo voltasse à Terra, Luciani queria que ele encontrasse uma igreja que pudesse reconhecer, livre de interesses políticos, livre da mentalidade dos grandes negócios que corroera a visão original do Cristianismo.

(…) Antes, porém, tinha inúmeros problemas a superar. A riqueza adquirida ao longo dos séculos não era um dos menores. Assumia muitas formas, inclusive incontáveis tesouros em obras artísticas. Vaticano S.A., como todas as multinacionais que aspiram à respeitabilidade, não era negligente em assuntos de arte. A generosidade está lá para todos verem, com direito a horários de visita: os Caravaggio, as tapeçarias de Raphael, o altar de ouro de Farnese e os castiçais de Antônio Gentili, o Apolo e o Torso do Belvedere, os quadros de Leonardo da Vinci, as esculturas de Bernini. As palavras de Cristo seriam ouvidas menos claramente em algum outro lugar mais modesto que a Capela Sistina, com seu majestoso Juízo Final, de Michelangelo? O Vaticano classifica tudo isso como bens não produtivos. A classificação que seria dada pelo fundador do Cristianismo pode ser avaliada por seus comentários a respeito da riqueza e prosperidade. O que pensaria Cristo se voltasse à Terra em setembro de 1978 e tivesse ingresso na Cidade do Vaticano? O que sentiria o homem que declarou “meu reino não é deste mundo” se vagueasse pelos departamentos da APSA (Administração do Patrimônio da Santa Sé), com suas equipes de analistas de investimentos clericais e leigos, acompanhando as flutuações dia a dia e até mesmo minuto a minuto das ações e outros títulos possuídos no mundo inteiro? O que pensaria o filho do carpinteiro dos equipamentos IBM em funcionamento tanto na APSA como no Banco do Vaticano? O que diria o homem que comparou a dificuldade dos ricos entrarem no Reino do Céu com um camelo passar pelo fundo de uma agulha sobre as últimas cotações do mercado de ações em Londres, Wall Street, Zurique, Milão, Montreal e Tóquio, transmitidas incessantemente ao Vaticano? O que diria o homem que proclamou “bem-aventurados os pobres” sobre o lucro anual da venda de selos do Vaticano? Um lucro que ultrapassa um milhão de dólares. Qual seria a sua opinião sobre os dízimos de Pedro, que vão diretamente para os cofres do Vaticano? Essa coleta anual, considerada por muitos como um barômetro acurado da popularidade do “papa”, produziu entre 15 e 20 milhões de dólares sob o carismático João XXIII…

(…) O que pensaria o fundador da fé sobre esses poucos exemplos de como seus ensinamentos maravilhosos e inspiradores foram deturpados? Se Cristo voltasse à Terra em setembro de 1978 ou se viesse agora e tentasse entrar no Vaticano, o resultado seria o mesmo. Não chegaria sequer às portas do Banco do Vaticano. Seria preso no portão de Santa Ana e entregue às autoridades italianas. Nunca teria a oportunidade de conhecer diretamente o Vaticano S.A., o conglomerado multinacional que é alimentado de muitas direções…

(…) No alto da lista de prioridades de reformas e mudanças que Luciani almejava realizar estava a necessidade de alterar radicalmente o relacionamento do Vaticano com o capitalismo e o desejo de mitigar os sofrimentos que testemunhara pessoalmente, derivados diretamente da Humanae Vitae, encíclica que proibiu o controle artificial da natalidade, negando que pudesse haver qualquer mudança no ensinamento tradicional sobre esse assunto. A realidade que Luciani observara no norte da Itália e no exterior demonstrava claramente a desumanidade da encíclica. Ele crescera em meio à pobreza, o que lhe fazia consciente de que esta é a principal geradora de ignorância, anafalbetismo, mentalidade estreita, aniquilamento da liberdade de pensamento. A liberdade é uma qualidade inerente a cada espírito, entretanto são as asas do conhecimento que lhe permitem voar amplamente em novos horizontes, que permaneceriam ignorados se as grades da ignorância lhe cerceassem realizar este vôo. Luciani conhecia diretamente os problemas causados por se manter a proibição ao controle artificial da natalidade. Dezenas de milhares de crianças morriam (e ainda morrem) anualmente de desnutrição. Naquela década, a população mundial aumentara em mais de três quartos de um bilhão de pessoas. Ao final da década de 60, parecia-lhe haver tanta pobreza e privação naquela sociedade quanto nos dias perdidos de sua juventude. Quando aqueles a quem se ama estão em desespero devido à sua incapacidade de prover um número cada vez maior de filhos, “tende-se a encarar o problema do controle da natalidade sob uma luz diferente da dos jesuítas que mantêm contato direto com o Espírito Santo…”.

(…) Os homens do Vaticano podiam ser radicais (pelo menos com os fiéis) até o dia do Juízo Final, mas isso não poria pão na mesa dos pobres. Um velho celibatário não entenderá tão profundamente a necessidade veemente do controle da natalidade quanto quem convive diariamente o confronto com a miséria e as dificuldades de alimentar seus filhos. Para Albino Luciani, negar a homens e mulheres o direito ao controle artificial da natalidade era mergulhar a Igreja de volta na Idade Média. Ironicamente, ao mesmo tempo em que condenava este ato, o Vaticano muito se beneficiou dos lucros do Instituto Farmacológico Sereno, uma das muitas companhias que possuía. Detalhe: entre os produtos mais vendidos estava justamente um anticoncepcional chamado Luteolas. Talvez se o celibato não fosse mais um dos preceitos da igreja comercial romana ela propiciaria uma mudança de posição no que diz respeito ao controle da natalidade…

(…) O Vaticano é o lugar onde preconceitos, arrogância, contradições, intrigas… estão presentes em toda parte, principalmente nas partes que envolvem seus cofres. Para defender seus próprios interesses, a Igreja modificou totalmente sua linha de pensamento com relação a empréstimos. Tradicionalmente, usura significa todos os ganhos obtidos através do empréstimo de dinheiro. Por mais de dezoito séculos ela dogmaticamente estabeleceu que a cobrança de juros em qualquer empréstimo era completamente proibida por ser contrária às leis divinas. Não obstante, por cortesia desta mesma igreja, o significado desta palavra nos últimos tempos mudou para emprestar dinheiro a juros exorbitantes, afinal agora tornou-se uma das maiores beneficiárias desse tipo de negócio… Produtos como bombas, tanques, canhões e anticoncepcionais, incongruentes com os ensinamentos católicos, podiam ser condenados no púlpito, todavia contribuíam para encher os cofres do Vaticano. Quando Mussolini precisou de armamentos para invadir a Etiópia, em 1935, uma parcela considerável foi fornecida por uma fábrica de munições comprada com o dinheiro do Vaticano. Apesar da intensa pressão mundial na época, o “papa” Pio XII recusou-se a excomungar Hitler ou Mussolini, dois ditadores envolvidos na Segunda Guerra Mundial. Para o Vaticano, uma das maiores vantagens a derivar do lucrativo acordo com Hitler foi a confirmação do Kirchensteuer, o imposto da igreja. Trata-se de um imposto que ainda é deduzido na fonte de todos os assalariados na Alemanha. A pessoa pode optar por renunciar a qualquer religião e assim obter a isenção. Na prática, porém, são bem poucos os que fazem isto. Ele representa entre 8 e 10 por cento do imposto de renda recolhido pelo governo alemão. O dinheiro é depois encaminhado às igrejas católica e protestante. Quantias substanciais, derivadas do Kirchensteuer, começaram a fluir para o Vaticano, nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. O fluxo continuou ao longo da guerra, chegando a 100 milhões de dólares em 1943… Como a própria Roma, a riqueza do Vaticano não se fez num dia. O problema de uma Igreja rica – e todos os que aspiram seguir os ensinamentos de Cristo devem considerar isto um problema – tem suas raízes no século IV. Quando o imperador romano Constantino converteu-se ao catolicismo e deu sua fortuna colossal ao “papa” de então, Silvestre I, estava-se criando o primeiro “papa” rico.

(…) A reivindicação da fé católica à singularidade é válida. Trata-se da única organização religiosa do mundo cuja sede é um Estado independente, a Cidade do Vaticano, com leis próprias. Medindo 108,7 acres, é menor do que muitos campos de golfe do mundo. Um passeio a pé, sem qualquer pressa, por toda a Cidade do Vaticano, leva pouco mais de uma hora. Para se contar suas riquezas, todavia, seria preciso muito mais tempo. A riqueza moderna do Vaticano está boa parte baseada na generosidade de Benito Mussolini. O Tratado de Latrão, realizado entre seu governo e o Vaticano, cuja conclusão se deu em 1929, proporcionava à Igreja uma ampla variedade de garantias e benefícios. A Santa Sé obteve reconhecimento como um Estado soberano. Ficou isenta do pagamento de impostos, tanto por suas propriedades como por seus cidadãos, além de não pagar taxas sobre mercadorias importadas; contava com imunidade diplomática e os privilégios inerentes, tanto para os seus próprios diplomatas quanto aos credenciados como representantes de potências estrangeiras. Mussolini garantiu a adoção do ensino religioso católico em todas as escolas secundárias oficiais e colocou toda a instituição do casamento sob a lei canônica, que proibia o divórcio. Os benefícios para o Vaticano foram muitos, obviamente os fiscais não estavam entre os menores…

(…) Albino Luciani teve um sonho. Imaginou uma Igreja Católica Romana que atenderia de verdade às necessidades de seus fiéis em questões vitais cruciais como o controle de natalidade. Sonhou com uma Igreja que dispensaria a riqueza, o poder e o prestígio adquiridos através do Vaticano S.A., uma Igreja que deixaria o mercado financeiro e abandonaria a agiotagem em que o nome de Cristo fora maculado, uma Igreja que voltaria a se apoiar no que sempre fora seu maior triunfo, sua fonte do verdadeiro poder, seu maior direito a um prestígio singular: o Evangelho. Esse “homem pobre, acostumado às pequenas coisas e ao silêncio”, a 28 de setembro de 1978 foi martirizado por suas convicções. Em confrontação com um homem como Albino Luciani, com os problemas que sua presença continuada apresentaria, a Solução Italiana foi aplicada. A decisão de que o “papa” devia morrer foi tomada e assassinaram o candidato de DEUS. O cadáver de Luciani foi encontrado em seu gabinete e as circunstâncias precisas dessa descoberta deixam bem claro que o Vaticano tentou encobrir. Começou com uma mentira, depois continuou com uma teia de mentiras. Mentiram sobre pequenas coisas. Mentiram sobre grandes coisas. Mas todas as mentiras tinham o mesmo propósito: encobrir o fato de que Albino Luciani, “papa” João Paulo I, fora assassinado… Foi o primeiro “papa” a morrer sozinho em mais de um século… mas também fazia muito mais tempo desde que um “papa” fora assassinado.

(…) Karol Josef Wojtyla não tem muita semelhança com Albino Luciani. Quanto a seguir o caminho de Albino Luciani, Wojtyla já deu incontáveis demonstrações de que tudo o que possui em comum com o seu antecessor é o nome papal, João Paulo. Este parece ser mais tolerante com os pecados cometidos por trás do balcão de um banco do que com os pecados cometidos na cama. O pontificado de João Paulo II tem sido norteado pelos negócios, como sempre, que se beneficiaram imensamente não só pelo assassinato de Albino Luciani, mas por todos os assassinatos que se seguiram à estranha e solitária morte ocorrida no Vaticano, em setembro de 1978. Depois de sua eleição, o atual “papa” tomou conhecimento das mudanças que Luciani tencionava efetuar. Foi informado das várias consultas de seu antecessor sobre uma ampla variedade de assuntos. Ele foi plenamente esclarecido sobre a atitude de Luciani em relação ao controle da natalidade. Em suma, João Paulo II se encontrava em posição excepcional para pôr em prática todos os planos de Luciani. Mas nenhuma das mudanças propostas por Luciani se converteu em realidade. Quem quer que tenha assassinado o “papa”, não cometeu um crime em vão.

(…) Muitos milhões de palavras já se escreveram desde a eleição de Karol Wojtyla, em tentativas de analisar e compreender como é o homem. É o tipo de homem que pode permitir que homens inescrupulosos permaneçam em seus cargos. Não pode haver qualquer defesa sob acusação de ignorância. O bispo Paul Marcinkus é diretamente subordinado ao “papa” e desafia a imaginação e credulidade que Wojtyla não tenha conhecimento de nenhum dos crimes deste americano. Temos um “papa” que publicamente censura os padres da Nicarágua que se envolvem em política, mas ao mesmo tempo concede sua bênção às enormes quantidades para o Solidariedade na Polônia, secreta e ilegalmente. É o pontificado dos duplos padrões: um jogo para o “papa” e um segundo para o resto da humanidade. O pontificado de João Paulo II tem sido um triunfo para os negocistas, os corruptos, os ladrões internacionais, enquanto sua santidade mantém uma imagem altamente divulgada que não é muito diferente da que se poderia imaginar num astro de rock em perpétua excursão. Os homens por trás do astro beija-pista-de-aeroporto estão garantindo que os negócios continuem como sempre, as bilheterias aumentando cada vez mais, ao longo dos últimos anos. É de se lamentar que os discursos severamente moralistas de sua santidade não possam presumivelmente ser ouvidos nos bastidores (…).

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