Inverno Nuclear, por Paul Ehrlich (1985)

O impacto de uma terceira guerra nuclear mundial sobre os seres humanos e sua civilização tem sido tema de muita atenção. Mas só recentemente começamos a entender o efeito catastrófico de uma guerra nuclear sobre a natureza. Como Paul Ehrlich explica aqui, a força da explosão inicial e subsequente envenenamento radioativo seria apenas parte do problema. Fumaça e poeira ocasionadas pelas bombas iriam lançar uma cortina de fumaça sobre o planeta, reduzindo até mesmo as temperaturas de verão para abaixo do congelamento. A fotossíntese, e a vida que depende dela, seria grandemente prejudicada. Quando os céus voltassem a clarear, o esgotamento da camada de ozônio que absorve a luz do sol significaria a cegueira para a maioria dos terráqueos.

O inverno nuclear, como Paul Ehrlich, Carl Sagan e seus colegas dublaram condições seguidas a uma guerra, poderia ser entendida como um problema de poluição do ar de uma magnitude sem precedentes na terra ao menos durante a ocupação por nossa espécie. Isso também representaria o maior impacto adverso feito pela humanidade no meio ambiente. Talvez uma espécie capaz de engatilhar uma guerra nuclear mereça isso, mas quais são as implicações éticas de nossa destruição da maioria das formas de vida e processos naturais do planeta?

É um privilégio, embora um tanto sombrio, poder apresentar a você um consenso de um grande e distinto grupo de biólogos nos prováveis efeitos biológicos de uma guerra nuclear em larga escala…

… O meio ambiente que confrontará a maioria dos seres humanos e outros organismos após um holocausto termonuclear será tão alterado, e tão maligno, que o estrago extremo e abrangente aos sistemas vivos é inevitável. É, por exemplo, inteiramente possível que os impactos biológicos de uma guerra, à parte daquelas resultantes diretamente de uma explosão, fogo e rápida irradiação, poderiam resultar no fim da civilização no Hemisfério Norte. Biólogos podem concordar com isso tão facilmente quanto todos nós poderíamos concordar que usar cianeto acidentalmente ao invés de sal em um molho de comida poderia estragar um jantar festivo.

A maior parte do meu foco será nas consequências indiretas de uma tal guerra sobre os seres humanos que seriam transmitidas através de efeitos nos sistemas ecológicos, amplamente ignoradas. Mas eu não quero minimizar os potenciais efeitos diretos, bem conhecidos como devem ser, pois eles serão verdadeiramente horripilantes. Considere o que estudos recentes indicam que aconteceria em uma vasta guerra termonuclear, em que algo entre 5.000 e 10.000 megatons de armas fossem detonadas – a maior parte no Hemisfério Norte. (Para colocar tal guerra em perspectiva, considere isso a grosso modo igual à explosão de meio a três quartos de milhão de bombas atômicas do tamanho da de Hiroshima, que equivale a apenas uma porção do atual arsenal nuclear dos EUA e da URSS)…

De acordo com uma estimativa, espera-se que só a explosão causaria 750 milhões de mortes. O mesmo tanto de pessoas que existiam no planeta quando nossa nação foi fundada seriam vaporizadas, desintegradas, esmagadas, destruídas, e espalhadas sobre a paisagem pela força explosiva das bombas. Outro estudo prediz que 1.1 bilhão de pessoas seriam mortas e um número semelhante seriam imediatamente lesadas pela explosão, pelo calor e pela radiação. Em outras palavras, quase metade da população global atual – incluindo a maioria dos residentes das nações ricas do Hemisfério Norte – poderiam tornar-se vítimas em poucas horas…

O destino de 2-3 bilhões de pessoas que não fossem mortas imediatamente – incluindo aquelas em nações bem distantes dos alvos – poderia de diversas formas ser pior. Elas, é claro, sofreriam diretamente com temperaturas congelantes, escuridão, e precipitação radioativa… Porém os efeitos mais significativos a longo prazo seriam produzidos indiretamente pelo impacto desses e outros fatores nos sistemas ambientais do planeta…

A que tipos de agressão os ecossistemas seriam submetidos no evento de uma troca nuclear completa entre os Estados Unidos e a União Soviética? … As duas agressões que provavelmente seriam as mais importantes – difusão das trevas e clima continental muito frio. Outras que não seriam triviais, porém, incluem incêndios; neblina tóxica (que poderia cobrir o Hemisfério Norte inteiro); intensificação da luz solar (quando penetrasse) com comprimentos de onda perigosos de luz ultravioleta (UV-B) que, entre outras coisas, danifica o material genético (DNA); elevados níveis de radiação nuclear; chuvas ácidas; a liberação de químicos venenosos no solo, na superfície, e em águas oceânicas litorâneas; poluição de lagos, rios e margens oceânicas com esgotos; e tempestades violentas em áreas costeiras…

A redução das temperaturas teria efeitos diretos dramáticos em populações animais, muitos dos quais seriam varridos pelo frio inabitual. No entanto, a chave para os efeitos no ecossistema é o impacto da guerra nas plantas verdes. Suas atividades provém o que é conhecido como produção primária – a vinculação de energia (através da fotossíntese) e o acúmulo de nutrientes que são necessários para o funcionamento de todos os componentes biológicos de ecossistemas naturais e agrícolas. Sem as atividades fotossintéticas das plantas, virtualmente todos os animais, incluindo os seres humanos, deixariam de existir. Toda a carne é verdadeiramente “grama”. Ambos o frio e a escuridão são nocivos para plantas verdes e para a fotossíntese… [Após uma guerra termonuclear] as temperaturas na superfície da terra afastadas do litoral poderiam estar bem abaixo do congelamento em todo o Hemisfério Norte por um ano, e esse frio próximo ao congelamento poderia da mesma forma afetar o Hemisfério Sul durante meses.

Isso tudo se resume em que virtualmente todas as plantas terrestres no Hemisfério Norte seriam danificadas ou mortas em uma guerra que ocorresse logo antes ou durante a estação de crescimento. A maioria das colheitas anuais seriam provavelmente mortas em instantes, e também haveria severo prejuízo a várias plantas perenes se a guerra ocorresse quando estivessem em crescimento ativo…

Lembre-se de que o frio é apenas um dos estresses a que as plantas verdes seriam submetidas. O bloqueio da luz do sol que causasse o frio também reduziria ou exterminaria as atividades fotossintéticas. Isso teria inúmeras consequências que recairiam sobre as cadeias alimentares, incluindo aquelas que mantém os seres humanos. A produtividade primária seria reduzida bruscamente em proporção à quantidade da redução de luz, mesmo se a vegetação não fosse danificada. Se o nível de luz caísse para 5 por cento ou menos de níveis normais – o que deve ser o caso durante meses em latitudes médias do Hemisfério Norte – a maioria das plantas seria incapaz de manter qualquer rede de crescimento. Deste modo, mesmo que as temperaturas se mantivessem normais, a produtividade das colheitas e ecossistemas naturais seria enormemente reduzida pelo bloqueio de luz solar após uma guerra. Em combinação, o frio e escuridão constituiriam uma catástrofe sem precedentes para aqueles sistemas…

À medida que o frio e a escuridão amenizassem, as plantas verdes seriam submetidas a outro dano crítico. As bolas de fogo nucleares iriam injetar grandes quantidades de óxidos de nitrogênio na estratosfera. Esses resultariam em largas reduções do escudo de ozônio estratosférico – na ordem de 50 por cento. O ozônio normalmente bloqueia os raios UV-B. Nas semanas ou meses imediatamente após a guerra, a fuligem e poeira atmosférica impediriam o aumento de raios UV-B de chegar ao nível do solo. Mas o esgotamento do ozônio duraria mais tempo que a fuligem e poeira, e, à medida que a atmosfera clareasse, os organismos seriam submetidos aos níveis de radiação dos raios UV-B muito mais elevados do que aqueles considerados perigosos aos ecossistemas e aos seres humanos…

Os ecossistemas do Hemisfério Norte também seriam submetidos a níveis muito mais altos de radiação ionizante devido à precipitação radioativa do que já se pensou anteriormente. Uma estimativa sugere que um total de cerca de 2 milhões de milhas quadradas a favor do vento das detonações seria exposta a 1.000 rems ou mais de radiação, a maioria dentro de 48 horas. Tais níveis de radiação seriam letais a todas as pessoas expostas e às muitas espécies de animais e plantas sensíveis…

Efeitos ecossistêmicos de altos níveis de radiação são mais difíceis de prever. Organismos não-humanos estão diferentemente suscetíveis ao estrago da radiação. Os mais vulneráveis incluem a maioria das árvores coníferas que formam extensas florestas nas partes mais frias do Hemisfério Norte. As coníferas poderiam ser mortas em uma área totalizando mais de 2 por cento de toda a superfície terrestre do Hemisfério Norte. Isto, por seu turno, criaria condições favoráveis ao desenvolvimento de extensos incêndios…

Este recital de forma alguma esgota os impactos que os ecossistemas sofreriam. Muitos ecossistemas, é claro, seriam danificados ou destruídos pela explosão, incêndios, e radiação das milhares de detonações de armas atômicas. Poços de óleo, reservas de carvão, pântanos de turfa, e assim por diante, poderiam continuar a queimar por meses ou anos. Queimadas secundárias, possivelmente cobrindo 5 por cento ou mais da superfície terrestre do Hemisfério Norte, teria efeitos diretos devastadores nos ecossistemas – especialmente aqueles não adaptados a incêndios periódicos. Múltiplas explosões de ar sobre a Califórnia no último verão ou no início do outono poderiam queimar boa parte do estado, levando a enchentes catastróficas e erosão na próxima estação chuvosa. Assoreamento, escoamento tóxico e chuvas radioativas poderiam matar muito da fauna de águas frescas e costeiras. Os sobreviventes humanos que buscassem nutrição de moluscos como mexilhões nas encostas do oceano seriam propensos a descobrir que estão mortos ou concentraram tanta radioatividade que seriam letais para o consumo…

O desastre que recairia sobre muitas ou a maioria das plantas do Hemisfério Norte a partir dos efeitos de uma troca nuclear contribuiria para um desastre igual ou maior para os animais de porte superior. Herbívoros e carnívoros selvagens e animais domésticos ou seriam mortos de imediato pelo frio ou iriam morrer de fome ou sede devido às águas da superfície estarem congeladas. Na sequência de uma guerra de outono ou inverno, muitos animais hibernantes em regiões mais frias poderiam sobreviver, apenas para encarar condições extremamente difíceis em uma primavera ou verão frio e escuro.

Necrófagos que conseguissem resistir o extremo frio projetado iriam provavelmente prosperar no período pós-guerra devido aos bilhões de corpos humanos e animais não sepultados. O crescimento caracteristicamente rápido das taxas de sua população poderia, após o derretimento, rapidamente fazer dos ratos, baratas e moscas os animais mais proeminentes logo após a Terceira Guerra Mundial.

Os organismos do solo não são diretamente dependentes da fotossíntese e podem com frequência permanecer hibernando por longos períodos. Eles seriam relativamente indiferentes ao frio e à escuridão. Mas em muitas áreas a perda de vegetação proeminente exporia o solo a severa erosão pelo vento e água. Os organismos do solo podem não ser terrivelmente suscetíveis aos efeitos atmosféricos posteriores da guerra nuclear, mas ecossistemas inteiros do solo são plausíveis de ser destruídos de qualquer maneira…

…O que aconteceria às partes de nosso planeta que estão cobertas de água? Organismos aquáticos tendem a ser protegidos das dramáticas flutuações na temperatura do ar pela lentidão com que a água muda sua temperatura. Em geral, portanto, sistemas aquáticos deveriam de certa forma sofrer menos perturbação do que os terrestres. Ainda assim, muitos sistemas de água fresca iriam congelar a profundidades consideráveis (ou completamente). Após uma guerra nuclear na primavera, por exemplo, três pés ou mais de gelo iriam se formar em todos os corpos de água fresca, ao menos na Zona de Temperatura Nórdica. Isso iria reduzir ainda mais os níveis de luz em lagos, lagoas, rios, e córregos em um mundo escurecido. O oxigênio seria escasso, e muitos organismos aquáticos seriam exterminados. Além disso, a profundidade do congelamento tornaria o acesso à superfície da água pelas pessoas sobreviventes e outros animais extremamente difícil.

Nos oceanos, a escuridão iria inibir a fotossíntese nos vegetais de pequeno porte (algas) que formam a base de todas as cadeias alimentares marinhas significativas. A reprodução dessas plantas, conhecida coletivamente como fitoplânkton, seria reduzida ou suspensa em muitas áreas, e o fitoplânkton sobrevivente seria rapidamente ingerido pelos animais flutuantes (zooplankton) que fazem dele sua presa. Perto da superfície do oceano, a produtividade de fitoplankton é reduzida pelos níveis presentes de UV-B; então após uma guerra, um aumento nesse tipo de radiação seria um stress adicional. No Hemisfério Norte, as cadeias de comida marinha poderiam ser interrompidas o tempo suficiente para causar a extinção de muitas valiosas espécies de peixe, principalmente em uma guerra pós-primavera ou verão.

Cenários plausíveis de guerra nuclear podem ser construídos que resultariam em efeitos atmosféricos dominantes de escuridão e frio se espalhando em virtualmente o planeta inteiro. Sob tais circunstâncias, a sobrevivência humana seria largamente restrita a ilhas e áreas costeiras do Hemisfério Sul, e a população humana poderia ser reduzida a níveis pré-históricos.

Quando muitos de nós lermos o livro de Jonathan Schell, O Destino da Terra, ficamos muito mais impressionados pela forma tocante em que ele apresentou o caso, mas eu suspeito que a maioria dos biólogos, como eu, pensaram que era um pouco extremo imaginar que nossa espécie poderia efetivamente desaparecer da face do planeta. Não pareceu plausível a partir do que sabíamos até então.

Agora, os biólogos tiveram que considerar a possibilidade de espalhar a escuridão e o frio sobre o planeta inteiro e por todo o Hemisfério Sul. Ainda parecia improvável para eles que isso resultaria imediatamente na morte de todas as pessoas no Hemisfério Sul. Nós assumiríamos que nas ilhas, por exemplo, longe das fontes de radioatividade e onde as temperaturas seriam moderadas pelos oceanos, algumas pessoas iriam sobreviver. Deveras, provavelmente haveria sobreviventes espalhados pelo Hemisfério Sul e, talvez, até mesmo em alguns lugares do Hemisfério Norte.

Mas é preciso perguntar sobre a persistência a longo prazo desses pequenos grupos de pessoas, ou de indivíduos isolados. Os seres humanos são animais sociais. Eles são muito dependentes de estruturas sociais que construíram. Eles vão enfrentar um ambiente altamente modificado, não apenas estranho para eles, mas também de certa forma muito mais maligno do que as pessoas já enfrentaram antes. Os sobreviventes retornarão a um estágio de caçadores ou coletores. Mas os caçadores e os coletores no passado sempre tiveram um enorme conhecimento cultural de seus ambientes; eles sabiam como viver da terra. Mas após um holocausto nuclear, as pessoas sem esse tipo de experiência cultural irão de repente tentar viver em um ambiente que nunca foi experimentado por pessoas em lugar algum. Muito provavelmente, enfrentarão um meio ambiente completamente novo, clima sem precedentes, e altos níveis de radiação. Se os grupos forem muito pequenos, existe a possibilidade de endogamia (procriação entre parentes). E, é claro, os sistemas sociais e econômicos e sistema de valores serão completamente destruídos. É difícil imaginar o estado psicológico dos sobreviventes.

Sob tais condições, não poderíamos excluir a possibilidade de que os sobreviventes espalhados simplesmente não seriam capazes de reconstruir suas populações, que eles  iriam, em um período de décadas ou até séculos, desaparecer. Em outras palavras, não poderíamos excluir a possibilidade de uma guerra nuclear total sincronizando a extinção do Homo Sapiens…

Deixe-me recapitular brevemente. Uma guerra nuclear em larga escala, como podemos ver, deixaria, ao máximo, sobreviventes espalhados no Hemisfério Norte, e esses sobreviventes iriam encarar extremo frio, fome, escassez de água, fumaça densa, e assim por diante, e eles estariam encarando isso tudo em um crepúsculo ou escuridão e sem o apoio de uma sociedade organizada.

Os ecossistemas sobre os quais eles estariam extremamente dependentes estariam severamente estressados, mudando de forma que nós dificilmente poderíamos predizer. Seu funcionamento seria gravemente danificado. Ecologistas não sabem o suficiente sobre esses sistemas complicados para estarem aptos a predizer seu estado exato depois que estiverem “recuperados”. Se a biosfera seria em algum momento recuperada a algo semelhante à de hoje é algo inteiramente problemático.

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